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quinta-feira, 9 de novembro de 2017

"Sem a classe média, a esquerda não ganha eleição" – Entrevista com o filósofo Ruy Fausto

Professor emérito da USP e especialista na obra de Marx, o filósofo Ruy Fausto publicou recentemente o interessantíssimo livro Caminhos da Esquerda – Elementos para uma reconstrução (Companhia das Letras, 2017), derivado de uma série de artigos publicados em 2016 na revista piauí. A obra oferece uma lúcida análise da atual conjuntura política no Brasil e no mundo, avaliando os principais dilemas e desafios para a esquerda nesse contexto, arrematando sua reflexão com um conjunto de propostas bastante viáveis e realistas para que a esquerda possa recuperar o fôlego e iniciar uma nova fase de sua atuação no âmbito das democracias ocidentais. Tudo isso, diga-se de passagem, desenvolvido numa linguagem acessível, elegante e envolvente - confesso que li tudo em menos de 48 horas! A presente entrevista, concedida por e-mail, explora alguns questionamentos suscitados pela obra.

Embora pequeno, o PSOL vem ganhando certa visibilidade, e tem conseguido resultados eleitorais relevantes. Com isso, o partido vem passando por suas “dores de crescimento” e precisa urgentemente enfrentar certos dilemas. O que podemos esperar do PSOL nos próximos anos?
O PSOL tem o grande mérito de ter feito a crítica do “patrimonialismo” do PT. Algo importante. Mas o fez para cair, em geral, num esquerdismo estéril. Sem dúvida, há muita diversidade lá dentro - isso é uma hipótese, porque só tenho informações muito indiretas a respeito. O PT e o PSOL são bons exemplos da diversidade de erros em que costuma cair a esquerda brasileira. Mas há gente boa no PSOL e enquanto crítico do PT, insisto, ele teve e tem um papel positivo.

Se bem me lembro, no livro não há qualquer menção a Marina Silva e à Rede. Você acha que ambos podem ter uma presença relevante na política brasileira nos próximos anos?
Há uma pequena referência. Respeito a biografia da Marina. Ao mesmo tempo, todos conhecem os seus defeitos. Uma visão arcaica em matéria de certos problemas “de sociedade”. E, nos últimos tempos pelo menos, uma “queda” pela economia liberal. Quanto ao partido, conheci em São Paulo, o deputado Alessandro Molon. Tive uma excelente impressão dele.

Alguns militantes da Rede a qualificam como um partido “de esquerda”, apesar de um discurso partidário um tanto escorregadio, que permanece um tanto vago acerca de inúmeras questões. O que o senhor pensa disso?
Precisaria saber mais a respeito. Algumas pessoas deixaram o partido. Entre elas, o meu amigo Liszt Vieira, ex-deputado e ex-diretor do Jardim Botânico. Com Liszt, saíram outros; há entre eles, parece, gente de valor. Em geral, é preciso não ter preconceito e buscar os melhores onde se encontrem.

O que esperar de um eventual mandato Bolsonaro? A questão não diz respeito ao próprio Bolsonaro, que sabemos muito bem o que representa, mas dos outros agentes políticos que estariam em torno dele. Em particular, como certos setores da direita se posicionariam? Poderíamos esperar uma oposição de direita a Bolsonaro? Um mandato Bolsonaro poderia, paradoxalmente, estimular uma requalificação do diálogo entre direita, centro e esquerda?
Acho que não se deve brincar com um personagem como esse. Uma vitória eleitoral de Bolsonaro pode ter efeitos catastróficos. Não poderia precisar mais, porém creio que não se pode imaginar que aprenderemos muito com um desastre como este. É preciso evitar que isso aconteça.

A seu ver, a classe política brasileira como um todo é mais leviana, oportunista ou despreparada que seus equivalentes de outros países?
Em relação à Europa, certamente.  Claro que cultura e formação, em si mesmas, não significam muito. Mas significam, sim, alguma coisa. A diferença entre um político francês médio e um brasileiro é enorme. Quanto ao oportunismo e a leviandade, claro que isto existe tanto aqui como lá, mas é claro também que existe diferentemente. Falo da relação Brasil/França. Quanto ao “personnel” político dos outros países da América Latina, não estou suficientemente informado.

Certos setores da direita brasileira se mostram entusiastas do regime parlamentarista, e essa é uma discussão que com certa frequência emerge em nosso debate político. Em sua opinião, quais seriam os efeitos do parlamentarismo no Brasil? Ele poderia agravar certos aspectos patológicos de nossa dinâmica política? Não pensei muito no assunto. O problema é que, no Brasil, e nas circunstâncias atuais, o projeto em geral é oportunista, e visa simplesmente servir a causa de A ou de B. Em tese, o parlamentarismo poderia equilibrar mais os poderes, o que poderia ser bom. Ao mesmo tempo, deve tornar mais difícil uma política de reformas mais radicais. Mas tudo isso é incerto.

A seu ver, a intelectualidade brasileira cumpre seu papel social de forma satisfatória? Em que medida a falta de diálogo entre ela e setores mais amplos da população pode ser atribuída à própria intelectualidade? Onde ela poderia melhorar nesse quesito? Em que medida podemos considerar que as atuais dinâmicas de fomento à produção acadêmica têm parte nessa questão?
Complicada a situação da intelligentsia brasileira. Houve um grande progresso, em termos técnicos (falo em particular do meu setor, se ouso dizer assim, que é, em princípio, a filosofia). Mas que significa esse avanço? Acho que mais especialização, certamente. Com relação ao pais, é difícil dizer. Acho que a intelligentsia fica dividida: a cabeça está nas teses universitárias (na filosofia, na sociologia, no melhor dos casos na história); o coração está, de modo mais ou menos selvagem, eu diria, na política. A cabeça é muito formal, o coração muito pragmático e superficial, se ouso dizer assim. Acho que a intelectualidade não pensa a política. E quando ela tenta se politizar, isso às vezes se reflete em anti-intelectualismo, o que é muito negativo. Enfim, não consigo formular muito bem, mas acho que há um descompasso. Isso é causa e efeito da falta de uma imprensa crítica. Quanto aos livros políticos, lê-se muita bobagem de ideólogos, e se estuda pouco o essencial: a meu ver, a história contemporânea, lida de forma crítica, como fazem os melhores historiadores (para a chamada revolução de Outubro, por exemplo, gente como Orlando Figes, Nicolas Werth ou Marc Ferro).

Fiquei muito contente ao ler suas contundentes críticas à obra de Zizek - que a meu ver muita gente admira sem entender. Como explicar o “fenômeno” Zizek? A entusiástica recepção a sua obra apontaria para certa falta de horizontes de pensamento na atualidade?
A confusão é geral. Um Zizek, puro produto midiático, com o que não quero dizer que ele seja ignorante, só podia ter sucesso. Ele publica até um livro de piadas... pela coleção do MIT!

A esquerda, me parece, apresenta certo problema crônico com a temporalidade, ora voltada excessivamente para o futuro, resvalando por vezes no utopismo delirante e na escatologia revolucionária, ora orientada para o presente sob uma modalidade imediatista, quiçá oportunista, levando muitas vezes às situações de capitulação que você menciona no livro. Quais seriam, a seu ver, as melhores maneiras para superar esse dilema?
É isso mesmo. Ou escatologia, ou empirismo e pragmatismo escrachados.  Ou se pensa no comunismo (nas suas mais delirantes expressões), ou se discute o destino do deputado N, e do senador F, ou os escândalos envolvendo esses mesmos ou outros personagens. Em primeiro lugar, seria preciso que o pessoal fosse mais bem informado. Insisto: ler menos os teóricos (filósofos, sociólogos, e ideólogos principalmente), e mais os historiadores. Depois, desenvolver um verdadeiro senso crítico. Isso a universidade não dá. De certo modo, nem pode dar. Vejo que muitos bons universitários são de uma ingenuidade total, por exemplo, diante de um fenômeno como o do “patrimonialismo” do PT. Acham tudo normal. Também são incapazes de fazer a crítica de ideólogos do tipo Laclau ou Zizek. É um mundo ingênuo, de gente que sabe fazer boas teses sobre a fenomenologia ou fazer pesquisas sociológicas com certo rigor, mas que nunca praticou alguma coisa que tivesse a ver com uma verdadeira atividade crítica. Tive experiências curiosas a esse respeito.

Na parte final do livro o senhor dedica algumas páginas a contestar o clichê de que a classe média brasileira seria predominantemente conservadora, sinalizando para a existência de uma considerável massa de indecisos, que, em certa medida, se mantém cética quanto aos projetos políticos presentes em nosso horizonte. Concordo plenamente com essa opinião, e me parece que essa situação se reflete no crescente número de abstenções em nossos pleitos eleitorais, que atingiu recordes nas eleições municipais de 2016. Parece-me que até aqui esse fenômeno não vem recebendo a devida atenção dos analistas políticos. Quais são, na sua opinião, os eventuais perigos e as possíveis oportunidades que esse fenômeno eleitoral trará à democracia brasileira nos anos vindouros?
É preciso parar de demonizar a classe média. Não me refiro só aos casos extremos, bem conhecidos. Refiro-me ao preconceito contra a classe média, que vem de um marxismo muito banal. A observar que na tradição marxista, inclusive na mais radical, se observa um grande interesse por “ganhar a classe média” (mesmo que isso seja às vezes questão mais de ordem tática do que outra coisa). Sem a classe média, a esquerda não ganha eleição. E sem a classe média do seu lado, a direita não pode dar golpes. Deve haver três estratos lá dentro, mesmo se isto deva ser confirmado por pesquisas: um setor fascistizante, um setor muito progressista, e uma massa que se trata de ganhar ou pelo menos neutralizar. Jogar a classe média nos braços da direita é suicídio político, fruto da ignorância.

Num trecho muito interessante do livro você comenta os problemas de certa idealização da “pobreza” e do “pobre” que há muito permeiam o pensamento de esquerda: “O importante estaria na periferia. Ou no campo. Ou nos bairros mais pobres. Tudo o que se faz lá, mesmo o pior – inclusive o que é claramente regressivo -, é supervalorizado” (p. 183). A reflexão me parece muito lúcida. Creio que há também certa perversidade na articulação desse tipo de pensamento: em determinados momentos, conforme as (in)conveniências eleitorais, a retórica de esquerda recorre com certa virulência, e mesmo desprezo, à figura do “pobre de direita”. Conforme a fortuna das urnas, vemos afirmações alternadas de que o povo “não é bobo” ou, pelo contrário, que ele é vítima da manipulação midiática. A seu ver, há nessa postura paradoxal algo além das simples conveniências de circunstância? Trairia ela algo mais profundo do imaginário da esquerda e de suas próprias tensões? Por outro lado, o estereótipo do “pobre de direita” tem algum fundamento? Existe efetivamente um compromisso das classes populares com o pensamento de direita ou há certa incompreensão dos anseios dessa população por parte da esquerda, que tantas vezes se arroga porta-voz desses setores?
Há um problema sério de atraso cultural. Claro que isso não é decisivo, o importante é a “lucidez” (mas esta é um enigma). Entretanto, claro que esse fator conta. Difícil ganhar gente para a esquerda, se o povo desconhece os elementos mais simples da luta política ou mesmo da história do pais. Dirão talvez que isso importa pouco, que é intelectualismo da minha parte. Não creio. Mas resta o problema: porque tanta gente pobre e/ou jovem se inclina para a direita? Confesso que não tenho resposta muito rigorosa. Os jovens de direita teriam “mau caráter”? Não sei.  Alguns deles, certamente. Mas em alguns ou muitos casos, deve haver muita confusão. A esquerda perdeu a hegemonia, por causa da corrupção, da irresponsabilidade, e às vezes da violência. A direita aparece, aos olhos de muitos, como mais responsável, meritocrática, respeitosa dos esforços de cada um, e também respeitosa da “ordem”.  A esquerda só pode retomar a hegemonia mudando radicalmente. O neo-totalitarismo, o patrimonialismo, o populismo – ou muito me engano ou – tudo isso envelheceu, e não tem futuro. É a minha impressão. E o trabalho tem que ser feito em três níveis, ou antes, há três registros, os três importantes, a considerar: movimento de massas, organizações e luta eleitoral. A tendência dominante é privilegiar um desse níveis em detrimento dos outros. Atualmente, na maioria dos casos, há uma tendência a privilegiar o que acontece ou aconteceu nas “bases”, como se as novidades (reais ou supostas) que ocorreram nesse setor, tivessem desqualificado definitivamente os outros registros. Ilusão e mitificação do que se chamava outrora de “movimento de massas”. Assim, as manifestações de 2013 viraram uma espécie de grande promessa de um “grand soir” futuro. Não subestimo o que se viu lá num primeiro momento, mas aquilo não tem o peso histórico (na realidade, mítico) que alguns lhe atribuem.

O senhor comenta a trajetória de certos políticos como Fernando Henrique Cardoso ou Tony Blair, que associaram suas mudanças de posicionamento político a um processo de amadurecimento pessoal. Temos também a frase apócrifa, “quem não foi socialista aos 20 anos não tem coração, quem continua socialista depois dos 40 não tem cérebro”, incansavelmente repetida, sob formas variadas, por muita gente que, diga-se de passagem, nunca foi socialista... Há aí certa retórica ou estética de infantilização da esquerda, articulada de modo mais ou menos consciente? Em sentido inverso, essa retórica encontraria seu eco no mote de que “todo direitista é burro ou mau-caráter”?
As relações entre ética e política são complexas. A meu ver, como digo em certa passagem daquele meu livro, só se pode dizer com algum rigor, que há certa convergência entre ser de extrema-direita e ter mau caráter. E se trata de “certa convergência”, não mais.  Quanto ao resto, temos as composições mais diversas. Ao mesmo tempo, as duas coisas – ética e política – não andam soltas. A esquerda tem de recuperar a ética, muito seriamente. Não se assustar com as acusações de “moralismo”. Mas ao mesmo tempo entender que a política tem um registro próprio que, se não é anti-ético, não se fundamenta propriamente na ética, embora a ética lhe sirva desempenhando um papel regulador. Já seria importante que se discutisse esse tipo de problema. Hesita-se muito a discutir essas questões. Aliás isso, tem interesse também para lidar com as grandes massas que são religiosas (98% dos brasileiros acreditam em Deus!).  Não vamos aderir às religiões, mas deixar claro que temos compromissos éticos (isso não é concessão, evidentemente) nos ajudaria a marcar alguns pontos na luta em prol da hegemonia da esquerda junto às “grandes massas”.

Há um ou dois anos, Luiz Felipe Pondé publicou uma coluna onde, com seu habitual estilo polêmico, defendia uma “direita festiva”, desencadeando reações apaixonadas de inúmeras pessoas de esquerda. A repercussão desproporcional dada a um texto tão inócuo me parece muito sugestiva de certos problemas de ordem cultural dentro da esquerda, que muitas vezes parece mais comprometida em perpetuar certo programa estético que em viabilizar um projeto político. Poderíamos talvez dizer que há aí mais uma patologia muito comum entre diversos setores da esquerda, nutrida desde os grêmios colegiais aos diretórios acadêmicos?
Não vi a reação. Mas é uma bobagem. Direita festiva, que significa isto? Direita irresponsável, que pensa em gozar a vida e não defender as causas da direita. Claro que isso existe, mas isso tudo só pode interessar um público superficial, de esquerda ou de direita, que anda atrás de temas de efeito fácil. Como tentei mostrar, Pondé tem muito de um Zisek da direita. Há os que supõem que isso seja elogio. Para mim, não é. Pondé é tão lamentável, pela direita, como Zizek pela esquerda. Até certo ponto, temos aí duas versões da mesma barbárie.

Você explora muito bem as diversas tendências que hoje coexistem na esquerda brasileira. Por vezes parece mais difícil promover o diálogo entre essas tendências que com as vizinhanças. O slogan “esquerda que a direita gosta”, por exemplo, se tornou moeda corrente nos últimos anos da era PT. A seu ver, em que medida as discussões dentro de um mesmo campo ideológico podem ser mais difíceis que com aqueles que estão de fora? Por que esse debate entre os próximos tende a ser tão tenso e acirrado?
É preciso discutir com a direita e com a esquerda. Mas, a rigor, só com parte da direita, e só com parte da esquerda... Inútil discutir com neo-stalinistas, por exemplo. Por outro lado, a discussão com a extrema-direita é perda de tempo. Isso quanto à discussão. Acho – isso é outra coisa – que é preciso, sim, ler os ideólogos de direita, e também os de extrema-direita. Esse último tipo de leitura talvez seja até mais importante - em geral, creio que é preciso desenvolver certo rigor de pensamento e gosto pela verdade, tanto nas discussões dentro da esquerda, como nas discussões com a direita. Na realidade, isso tudo é complicado. Porque tem uma direita republicana, uma direita extremista, e idem para a esquerda. Em muitos casos, a esquerda fanática (neo-stalinista, por exemplo) é certamente muito pior do que a direita republicana.  A discussão tem muitas facetas que é difícil definir. Uma coisa importante é saber que, para combater os Bolsonaro e companhia, precisamos mais do que da esquerda, certamente. Isso não é motivo para que abandonemos as nossas posições. É só um alerta para situações de emergência.

Na última década, a esquerda brasileira tomou para si inúmeras pautas identitárias ligadas a grupos específicos, especialmente pautas ligadas aos movimentos negro, feminista e LGBT. Existe hoje um excesso de ênfase nessas pautas? A atenção a essas temáticas vem ofuscando outras questões importantes?
Inútil afirmar que essas lutas não têm importância. A tese nem merece discussão. Isso posto, as relações dessas lutas, com as agendas clássicas, são complexas. Não se deve supor que as patologias existem apenas nessas últimas. Por outro lado, é preciso levar em conta que as primeiras são, em certa medida, frágeis, porque a sua emergência (não a sua existência) é relativamente recente. Há um problema complexo de articulação dessas lutas, entre elas, e com a agenda clássica da esquerda. A acrescentar o grande problema, no interior do registro clássico, podemos dizer, das relações entre liberdade e igualdade. Tudo isso tem de ser constantemente pensado e repensado. Em conexão com as práticas é claro, mas sem pragmatismo nem anti-intelectualismo.

Uma das questões mais instigantes discutidas no livro diz respeito às possibilidades de uma economia de mercado não-capitalista, libertando o dinamismo próprio das economias de mercado dos aspectos predatórios do grande capital corporativo. Há, obviamente, certa resistência por parte da direita em engolir essa argumentação. No entanto, tais proposições também não mostrar-se-iam ininteligíveis para boa parte da esquerda? Quais seriam os principais desafios a superar nesse sentido?
Há quem pense que é preciso deixar de lados essas questões. Não é a minha posição. Temos que dizer para onde queremos que o mundo vá. Quem acha que isso não tem importância é mais arcaico do que supõe. O melhor modelo, quanto ao conteúdo do projeto, é o de uma sociedade com mercado, com Estado, com propriedade privada, e no limite com capital – mas não hegemônico. Uma sociedade com mercado, mas em que a economia solidária e cooperativa é hegemônica. Isso é pensável. Mas tem que ser sempre discutido e rediscutido, sem perder de vista os problemas imediatos (que, de resto, podem pôr na ordem do dia organizações de tipo cooperativo, por exemplo). Em resumo, trata-se de um programa de neutralização extensiva e intensiva do capital.

Como as dimensões de competição e cooperação poderiam ser articuladas de modo socialmente proveitoso numa economia de mercado não-capitalista? Em tal situação, quais seriam os eventuais perigos de um desequilíbrio entre essas duas dimensões?
São problemas a discutir. Acho que o lado “competição” (mesmo a econômica) não desaparece. É como se houvesse uma verdade regional do utilitarismo. Além do que, há competição fora da economia: por prestígio, saber, sucesso artítico etc etc. Porém existe também o outro lado. Será preciso aprender a articular as duas coisas, no campo da economia e fora dele. O bicho homem vive das duas coisas: competição e algo assim como “generosidade”.  Creio que essa dualidade define melhor o humano do que os dois extremos, pessimista e otimista. O curioso é que se avançou muito no estudo do homem a partir da psicologia ou no registro da psicanálise, mas se pensou pouco sobre o humano na política. Subsiste às vezes o antigo otimismo da produção do “homem novo”, ou então se pula abruptamente e, muitas vezes sem coerência, para os delírios do anti-humanismo. Seria preciso pensar mais a relação entre antropologia filosófica e política.

Os dois mandatos de Lula promoveram um vigoroso processo de valorização do salário mínimo, que segue, todavia, estagnado há quase oito anos. Esse bem-vindo aumento salarial veio acompanhado por uma política de desregulação no setor de crédito pessoal, cujos efeitos são dúbios: por um lado, permitiu certa melhora do padrão de vida de uma parcela significativa da população, o que é indiscutivelmente bom; por outro, assistimos ao desenvolvimento de práticas predatórias no setor de empréstimos pessoais, lançando boa parte da população num acentuado processo de endividamento familiar. Como poderíamos pensar numa política de regulação capaz de tornar o crédito um instrumento de emancipação para a cidadania, e não para a servidão consumista?
Só um outro tipo de governo poderia fazer isto. Falta ao PT a capacidade para uma reflexão mais profunda sobre esses problemas. Trata-se de dar maior possibilidade de consumo ao povo, mas que seja um melhor consumo. Caso contrário, esse mais pode ser contraproducente. Mas como evitar os efeitos perversos? Talvez facilitando o crédito de forma diferenciada. Ou condicionando a ajuda a certas exigências, como de resto se fez e se faz. Mas me pergunto até que ponto tudo isso funciona bem. Há um problema global de educação popular, que passa também pela educação em sentido geral. Criaram-se muitas universidades novas, porém o mais urgente era e é a criação de boas escolas primárias e secundárias. Isso importa muito mais, creio eu, do que a multiplicação de universidades.

Um tema que percorre todo o livro, naturalmente, é a questão da corrupção no setor público, que preocupa toda a sociedade brasileira. Um tema bastante escamoteado nos debates políticos, no entanto, é a corrupção existente no setor privado. Eu mesmo já trabalhei numa empresa privada onde ocorreu um clamoroso caso de corrupção: um alto funcionário administrativo manteve durante alguns anos um esquema criminoso através do qual desviava dinheiro da organização, prejudicando tanto a empresa como boa parte dos funcionários. Descoberto o caso, todavia, ele foi abafado e resolvido extrajudicialmente, para preservar a imagem pública da instituição; não houve transparência sequer para com os funcionários lesados pelo esquema. Como despertar a atenção da opinião pública para essa problemática? Que consequências isso poderia ter para a reconfiguração dos debates acerca da corrupção?
A esquerda tem de assumir com clareza o tema da corrupção. Isso exige esforço por causa do peso do populismo. Vamos tentar fazer da exigência anti-patrimonialista e da exigência anti-capitaista (anti-grande capital) um jogo que não é de soma nula. O mesmo para a relação entre democracia e anti-capitalismo. Isto implica em romper com um cânone muito arraigado, na política nacional e mesmo internacionalmente. A esquerda tem de ser vanguarda também em matéria de recusa da corrupção. O PT o era no seu início, é bom não esquecer.

Presenciamos, mundialmente, certo processo de esvaziamento da democracia representativa. Parece que a participação política se inicia e se encerra nas urnas. Por outro lado, políticos de todas as tendências se elegem para o executivo e o legislativo prometendo isso ou aquilo, apenas para fazer justamente o contrário, gerando um compreensível desencanto entre os eleitores. A cédula eleitoral se torna, na prática, um cheque em branco, empregado nos mais vis estelionatos eleitorais. Que práticas institucionais poderíamos usar para evitar esse tipo de situação, de modo a tornar a democracia efetivamente representativa?
Não sou contra instituições e práticas de democracia direta, mas sou contra fazer da democracia direta uma bandeira central e exclusiva. É uma ilusão perigosa. A melhor tradição da esquerda não recusou a representação. Pelo contrário. Sovietes, conselhos de fábrica, comitês de soldados, assembleias de bairro, tudo isso teve caráter representativo. Em compensação, o bolchevismo sempre desconfiou da representação. Há aí matéria para reflexão. A democracia direta como bandeira central de luta se interverte, em geral, no seu contrário: na ausência de democracia, no autoritarismo de esquerda.

O diálogo e a negociação são muito importantes numa democracia, mas trazem sempre o risco da capitulação, como bem vimos nos famigerados “pactos de governabilidade” da era PT. Quais seriam os caminhos viáveis para uma esquerda que dialoga e negocia democraticamente, sem capitular vergonhosamente?
É preciso negociar. Mas segundo princípios. Isso é difícil? Claro que sim. Cada caso é um caso. Mas nunca se abandona a ideia de que há alianças válidas, e outras que não o são. Impossível formular normas gerais, senão a recusa das alianças com corruptos e reacionários. Claro que poderá haver casos intermediários, mais ou menos duvidosos. Será preciso considerar o caráter da aliança, e, digamos, o caráter dos eventuais aliados. E também discutir amplamente a validade ou não de alianças, de partidos ou de movimentos. É preciso dizer não à política de fechamento, que recusa se aliar mesmo com gente bastante razoável porque não tem as nossas convicções, mas também há que recusar a política aliancista irresponsável e oportunista do tipo da do PT.  Difícil precisar muito mais, sem considerar casos concretos. Por exemplo (para os problemas dentro da esquerda):  não se recusará um candidato razoável, porque é membro do PT. Nem alguém do PSOL, porque tem, apesar de tudo, certos traços “gauchistas”.  Também depende dos fins da aliança: eleger um deputado, eleger um presidente, participar de uma campanha pública com tais ou tais fins etc.

Nas eleições de 2016 a campanha de Freixo obteve um nível recorde de doações de pessoas físicas, em grande parte se beneficiando das condições de arrecadação propiciadas pela Internet. O senhor acha que essa tendência é promissora para a esquerda em futuras eleições? Por outro lado, ela pode trazer inconveniências de alguma espécie?
É boa a ideia da multiplicação de pequenas doações, via internet, se possível ou necessário. Em parte, foi assim que se fez a campanha de Obama. Seria importante desenvolver esse tipo de prática, para o futuro.

Há algum tempo li uma excelente entrevista com um sociólogo, cujo nome infelizmente esqueci, estudioso das igrejas neopentecostais. Ele fazia uma reflexão interessante, sinalizando que a família é algo muito importante na vivência dos brasileiros, mas é um tema subestimado e pouco visitado pela esquerda, que não apresenta nenhum projeto consistente em relação à questão, deixando o terreno livre para certo pensamento de direita que vem ganhando espaço com um discurso de defesa da “família tradicional brasileira”. Com efeito, vivemos hoje certa crise das formas da família, mais visível porque mais superficial e “escandalosa”, acompanhada por uma crise mais profunda, silenciosa, do significado social da família – crise essa que se relaciona diretamente a questões pertinentes à inserção da família no mercado de trabalho, à emergência de novas tecnologias que interferem no cotidiano familiar e, last but not least, às relações com as instituições de educação formal.  A seu ver, a questão é realmente relevante? Quais seriam marcos produtivos para pensar a questão por um viés “de esquerda”?
Sim, acho que a questão é relevante. A discutir sem sectarismo, mas sem concessões inúteis ao espírito mais conservador. Seria importante explicar as mutações da família. Também mostrar a ambivalência dessas instituição: como dizia Adorno, pensador insuspeito, sob certas condições, ela ajude e proteje. Mas é ela também que oprime e esmaga. Seria preciso mostrar tudo isso, com ilustrações históricas e análise sociológica. Com relação à religião, por em evidência o melhor dela. Como dizia Feuerbach, há dois lados na religião (em particular no cristianismo): um positivo, de não-agressão, de respeito pelo outro, de tolerância. O outro lado é o contrário disso: fanatismo, agressividade, opressão. Acho que a crítica feuerbachiana da religião está viva. Talvez mais do que a marxista.

Vivemos hoje, nitidamente, um momento de colapso da fase econômica iniciada com o Plano Real. De que modo o senhor imagina que essa situação pode vir a afetar a política no Brasil a curto, médio e longo prazo?
Se o país continuar nas mãos dessa gente, que eles “equilibrem” ou não a economia, o povo continuará sofrendo. A primeira exigência é uma reforma tributária radical, cuja justificação até os economistas liberais reconhecem (de boca para fora).

Em sua opinião, o recente revigoramento da direita brasileira é mero reflexo da “Era PT” ou traduz um desconforto mais profundo ou antigo? Estaríamos diante de certa “desforra” contra a Constituição de 88?
Desforra contra a esquerda, através do PT. Vontade de aproveitar a desmoralização da esquerda, que vem, numa duração maior, da crise do totalitarismo, e de imediato da debacle do PT (este entrou em cheio na política de promiscuidade entre o público e o privado: armadilha fatal a esse partido, mas que complicou, infelizmente, a situação do conjunto da esquerda).

O neoliberalismo brasileiro me parece muitas vezes de consistência duvidosa. Em que medida o discurso neoliberal no Brasil serve apenas como fachada e pretexto para a articulação de interesses muito mais sórdidos e prosaicos? Em outras palavras, há de fato um neoliberalismo brasileiro, para além da esfera dos discursos?
Claro que há as duas coisas. Interesses sórdidos, oportunismo. Mas há também interesses de classe que se fazem manifestar como que através dos objetivos mais inconfessáveis. Em todo o caso, o cinismo de classe campeia (a exemplo da questão do trabalho escravo!).

A seu ver, existem hoje possíveis pontos de convergência entre a direita e a esquerda no Brasil, capazes de viabilizar consensos produtivos, ainda que pontuais?
Entre a esquerda democrática e a direita republicana, há em comum, em princípio, a exigência democrática. Mas parte daquela direita, senão toda, se comprometeu com o impeachment, certamente um “golpe legal”...

Na sua opinião, a esquerda - especialmente as militâncias de esquerda - têm pleno domínio das argumentações articuladas pela direita? Quais seriam as consequências disso para o debate político no Brasil?
A ignorância é grande. A falta de rigor. A preguiça de pensar. Necessitamos de amor à verdade (ao contrário da “tecnologia contra a verdade”, como pretende o pós-modernismo vulgar). Isso posto, é preciso dizer que a direita brasileira é muito lamentável. Tanto seus homens políticos como seus intelectuais.

As recentes eleições presidenciais nos EUA trouxeram Trump ao poder, mas, como você bem lembra, também foram marcadas pela candidatura-fenômeno de Bernie Sanders, que representa indubitavelmente um sopro de esperança no atual cenário mundial. Na sua opinião, a esquerda brasileira dedicou a devida atenção à campanha de Sanders? Que lições podemos tirar dela?
Acho que não se interessou muito. Mas não sei bem, porque estava fora. O fato do programa de Sanders ser social-democrata não deve ter pegado muito bem para uma esquerda muito marcada por falsos radicalismos. Simples hipótese.

Há futuro para a União Europeia?
Creio que há. Difícil, mas há. O neo-liberalismo é um cavalo de Troia no interior da U.E. Mas o projeto europeu é bem mais do que isto. Mélenchon e outros soberanistas de esquerda se enganam a esse respeito. Há uma difícil luta a travar, por uma Europa democrática e “social”.  Não se pode abandoná-la.


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