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terça-feira, 2 de maio de 2017

Os mundos e suas placas

Cerca de meia-noite.

Abro os olhos no vagão de trem fracamente iluminado. As entranhas do veículo parado emitem um suave zumbido. Ainda sonolento, olho pela janela e levo um tremendo susto. O trem se encontra parado numa pequena estação ferroviária, deserta. A placa da estação ostenta palavras incompreensíveis. Polonês...?! O que teria acontecido?!

Eu partira de Paris ao cair da tarde e adormecera ainda na França, a caminho de Madri. Teria o trem tomado a linha errada, rumando para algum lugar da Europa Oriental? Mas... como?! Seria impossível percorrer tamanha distância em tão pouco tempo! Como o maquinista não teria percebido que viajávamos na direção errada? Seria isso possível?! Onde estaríamos? Onde?! O que se passava?! Estaria eu dormindo ou acordado?! Seria aquilo um sonho?

Durante alguns minutos me debatia nesses pensamentos angustiados e desconcertantes, quando finalmente me dei conta do que se passava: estávamos no País Basco! A língua estranha naquela placa não pertencia ao Leste Europeu, mas aos Pirineus.

Passei por essa curiosa experiência em 2012. Além de engraçada, ela me parece instigante em vários sentidos. Antes de tudo, pelo modo como o letramento informa nossa percepção de mundo, a ponto que a mera leitura de um placa possa provocar tamanho estranhamento, induzindo até uma angústia pavorosa. Ao mesmo tempo, lembra quanto nossas próprias percepções de espaço, distância e tempo incorporam também dimensões linguísticas às quais mal prestamos atenção, a não ser quando nos deparamos com o inesperado.

Não é apenas uma questão de língua, todavia, mas de contexto social específico. Digamos, se eu tivesse avistado um simples cartaz em basco afixado à parede da estação, a sensação de estranhamento talvez fosse menos brutal. Há aí um problema de convenções de sinalização: eu sabia que aquela não era uma placa qualquer, mas que indicava o nome do lugar onde estávamos - um nome que não parecia nada francês ou espanhol. Um nome estranho, num determinado contexto convencional, foi capaz de me induzir a imaginar coisas absurdas e extremamente improváveis. Nesse caso, as convenções, que normalmente servem para facilitar e orientar nosso trânsito pelo mundo, atuaram de modo inesperado, desorientando e dificultando a percepção da realidade. No limite, a sonolência contribuiu até para que me pusesse a questionar a própria realidade de minhas percepções naquele momento!

Essa situação me trouxe curiosas ressonâncias, lembrando a epopeia ferroviária de Jacinto de Tormes em A cidade e as serras, perdido entre os mundos francês e ibérico...

Mas minhas experiências estranhas com placas ainda não estavam esgotadas naquela semana. Após breve estadia em Madri, seguimos para Lisboa. Depois de dois meses morando em Paris, finalmente retornava a uma terra onde se fala minha língua nativa.

No entanto, em inúmeros momentos, me pegava estranhando algumas placas, escritas em minha própria língua. Após minha brevíssima passagem por Madri, meu primeiro impulso em diversos momentos era de achar que havia erros de tipografia nas placas, invariavelmente seguidos, após um lapso infinitesimal, pela consciência de que elas estavam escritas em português... não em espanhol! Esses pequenos equívocos aconteciam sempre em momentos que me encontrava distraído, causando um breve desconforto, quase como um susto.

O mais curioso nisso tudo é que, durante os dois meses que passara em Paris, não perdera contato com a língua portuguesa. Era a língua que usava em casa com minha esposa, bem como com os demais companheiros de andar na Casa do Brasil da Cidade Universitária. Era também a língua com que mantinha contato cotidiano com meus amigos do Brasil, através da Internet, sem falar nos livros em português que levara do Brasil e nos telefonemas para a família. Em suma, não passei nenhum dia na França sem usar a língua portuguesa - falando, ouvindo, lendo, escrevendo. Como era possível que viesse a estranhá-la tanto, em Lisboa? Estranhar uma língua tão estranha quanto o basco, vá lá, mas estranhar minha língua nativa e cotidiana... Não fazia nenhum sentido!

Mais uma vez, me parece, trata-se de uma questão de contexto. Durante os dois meses anteriores eu realmente utilizara o português em meu dia-a-dia, mas em situações muito específicas: em livros, no computador ou na comunicação oral. Praticamente tudo que via em ambiente urbano estava escrito em francês. Naqueles dois meses, a língua de Molière se tornara minha língua de uso público, enquanto a língua de Camões era minha língua de uso privado. Inconscientemente, eu criara para mim dois mundo linguísticos paralelos em uma mesma cidade: minha Paris era francófona e lusófona ao mesmo tempo.

Desse modo, chegando a Lisboa, me encontrava num ambiente linguístico um tanto diferente, onde o português retornara um tanto bruscamente à condição de língua única. Era, na verdade, meu ambiente familiar, do qual me desacostumara: ali estava eu, parodiando Lévi-Strauss, a estranhar o familiar...!

"Minha pátria é a língua portuguesa", disse Fernando Pessoa. Tomo a liberdade de acrescentar que nossos mundos são nossas línguas e seus contextos, repletos de estranhos estranhamentos...

Nem tenho certeza se isso aqui é basco, mesmo...

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