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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Notas de um historiador a "Uma carta aberta ao Brasil"

Dedicado aos amigos Lahna Barbosa e  Kainã Diniz, que despertaram minha curiosidade sobre o tema


O texto Uma carta aberta ao Brasil, de um tal Mark Manson, autointitulado “autor, pensador e entusiasta da vida” americano, anda circulando na Internet e causando polêmica. Enquanto historiador, traço aqui algumas notas sobre o texto em questão. Minhas anotações ficaram um tanto longas, mas enfim, “textão” contra “textão”. Se vocês tiveram paciência para ler as reflexões de Manson, rogo-lhes boa vontade para acompanhar as minhas. Sigamos por partes.

1 – O texto propriamente dito
Do ponto de vista formal, cabe apenas notar que o texto adota a forma de uma carta endereçada diretamente ao país, artifício retórico que poderia ser interessante, caso o autor o empregasse de forma consistente – o que não acontece: Mason perde o fio da meada, por vezes se dirigindo diretamente ao Brasil, por outras aos brasileiros, rompendo seguidamente a coesão do texto.

Quanto ao conteúdo, o autor articula uma crítica superficial e moralista à “cultura brasileira” (noção vaga e imprecisa), à qual atribui os problemas do Brasil, constituindo o principal obstáculo ao “desenvolvimento” e ao “progresso” do país. Segundo Mason, a "cultura brasileira" fomentaria diversos obstáculos ao progresso, como a corrupção cotidiana, uma suposta vaidade excessiva, falta de compromisso etc. Sempre apelando para o senso comum rasteiro, o “pensador” receita uma genérica “revolução interior” como panaceia para solução de nossos problemas, no melhor estilo literatura-motivacional-e-de-autoajuda.

Muitas das críticas são pertinentes, mas o autor as articula de modo completamente isolado e descontextualizado, o que é insustentável em termos de uma análise social séria. Vale ainda ressaltar a arrogante perspectiva adotada pelo texto, o que será analisado a seguir.

2 – As matrizes discursivas
A tal “carta aberta” é tão superficial que mal vale a pena discuti-la. O mais interessante aqui é abordar as matrizes discursivas que a sustentam, o "meta-texto" por trás e para além do texto. Assim, convém analisar o paradigma civilizatório que lhe serve de alicerce, pautado em noções vagas e bastante reificadas de “progresso” e “desenvolvimento”. Ao contrário do que parece, tais ideais não são inerentemente bons ou desejáveis.

Nesse sentido, vale lembrar que no início do século XX a Alemanha e a Áustria eram consideradas duas das nações mais “civilizadas” (equivalente ao atual “desenvolvidas”) do mundo e deram origem a um dos regimes mais bárbaros e perversos da contemporaneidade. De fato, a ascensão do nazismo deixou perplexa e chocada boa parte dos intelectuais europeus de então, que imaginavam que suas sociedades supostamente guiadas pela razão esclarecida estariam imunes a semelhante barbárie, enquanto, pelo contrário, o que se viu foi a instauração de uma brutalidade dotada de eficiência industrial e moderníssimos requintes administrativos, o que, no fundo, choca muito mais que outros atos de violência espontânea e descontrolada, cometidos por gente “ignorante”. Aliás, vale lembrar que foi na super educada e civilizada Viena da virada do século XIX que o Dr. Freud encontrou o grande casulo de neuroses sexuais de onde extraiu sua psicanálise. Por sinal, em minhas poucas viagens fora do Brasil nunca conheci um povo mais educado e polido que o vienense, mas é difícil esquecer que poucas décadas atrás seus antepassados receberam o Führer de braços abertos – ou, mais literalmente, esticados... Também é interessante destacar que os ideais de eugenia e supremacia racial defendidos pelo Nazismo não eram fruto de falta de instrução; pelo contrário, as teorias racistas se apoiavam na ciência da época, com forte inspiração da teoria evolucionista darwinista.

Outro interessante exemplo é o Japão atual. Há pouco comprei um livro do monge budista Kentetsu Takamori; ele lembra que o Japão atualmente proporciona a seus habitantes considerável prosperidade, bons serviços públicos, elevados padrões de consumo e grande conforto material, apresentando baixíssimos índices de miséria ou criminalidade. Apesar disso, milhares de japoneses levam vidas infelizes, esvaziadas de sentido e significado, consumidas por uma estafante rotina de trabalho na juventude e uma tediosa aposentadoria na velhice. Há alguns anos um “manual do suicídio” se tornou best seller em terras nipônicas, elencando inúmeros motivos supostamente razoáveis pelos quais um japonês poderia renunciar à própria vida.

Apelando para uma experiência pessoal, o lugar mais desagradável que já visitei foi Zurique, na Suíça. É uma cidade riquíssima, com elevados padrões de consumo de luxo, mas me pareceu uma cidade absolutamente sem alma e sem coração, onde não se acha uma livraria decente ou um museu interessante, embora se encontrem lojas das maiores grifes internacionais a cada esquina e seja possível avistar um luxuoso carro esportivo a cada 30 segundos. É o tédio consumista levado ao paroxismo. Não à toa, Zurique é hoje uma das capitais mundiais das clínicas de suicídio assistido. Outro exemplo europeu do consumismo avassalador é o Palais Royal, em Paris, que abrigava as melhores livrarias da Europa no século XIX, mas no qual não se encontra mais nenhuma hoje em dia - embora também ali abundem lojas das mais caras e prestigiosas grifes da atualidade. Me parecem sinais curiosos do quanto o tal “desenvolvimento” não é o suficiente para nos oferecer vidas mais ricas e significativas.

Nem me dou ao trabalho de avançar sobre o caso dos Estados Unidos de Manson. Basta ir a qualquer cinema carioca para constatar a franciscana pobreza intelectual, moral e cultural do “desenvolvido” povo americano.

Enfim, nada disso faz do Brasil um lugar melhor, e nossos problemas são muito reais, mas não acho que as nações "desenvolvidas" sejam realmente um exemplo a seguir ou um objetivo a alcançar. Por mais que os deslumbrados turistas brasileiros louvem a fabulosa “educação” do europeu médio, me parece que ruas livres de guimbas de cigarros e pessoas não dando calote no transporte público sejam objetivos civilizacionais muito ralos para ter como modelo e objetivo. Francamente, almejar isso é se contentar com quase nada. Por sinal, quem circula em ruas, bairros e horários menos turísticos de Paris, sabe muito bem que nem todas as localidades são tão limpas e nem todos os parisienses são tão honestos assim - basta passar cinco minutos no "tramway" para verificar quantas pessoas viajam sem validar seus bilhetes. Veja bem, não estamos falando de imigrantes ou refugiados; se trata de “français de souche”, “franceses de raiz”, para usar um termo bem preconceituoso e descortês. Aliás, o turista brasileiro médio ama o Museu do Louvre, mas nunca pôs os pés no Museu Histórico Nacional. O brasileiro "instruído" ama a cultura - desde que ele esteja no exterior e ele possa postar uma selfie com a Gioconda. Aliás, ele nem presta atenção às magníficas Bodas de Caná de Veronese, que estão na parede oposta, na mesma sala.

Tudo isso me faz lembrar o interessante O desconforto da riqueza, livro do historiador (americano, por sinal) Simon Schama, que explora as múltiplas dimensões da cultura holandesa no século XVII, período em que os holandeses se tornaram a maior potência naval, comercial e financeira da época. Logo no começo do livro, Schama analisa o relato de um inglês residente na Holanda, que comentava um estranhíssimo hábito dos holandeses seiscentistas: limpar cotidianamente a casa, sem que ela estivesse "suja" - para os padrões britânicos, a residência só estaria suja, digamos, quando  o chão estivesse enlameado ou um penico fosse entornado acidentalmente, por exemplo. O texto mostra, nesse simples hábito de higiene, uma disparidade cultural crescente entre holandeses e ingleses de então; a atitude holandesa remetia à nascente disciplina social moderna, composta por valores como decência, austeridade, frugalidade, poupança, trabalho diligente etc.

Por outro lado, curiosamente, Schama aborda uma prática realmente chocante: para puro entretenimento, era comum que os holandeses pagassem uma entrada para visitar prisões, apenas pela "diversão" de xingar, humilhar e debochar dos detentos. Gesto bastante bárbaro, me parece. Mas seria um erro imaginar que as duas atitudes sejam antitéticas. Pelo contrário, são faces da mesma moeda: era uma sociedade que se envaidecia de sua (supostamente) virtuosa disciplina e, por isso mesmo, se imaginava no justo direito de escarnecer cruelmente daqueles que lhe pareciam em condição moral (e social) inferior. Ao longo das Idades Moderna e Contemporânea esse novo modelo civilizatório se espalhou pelo mundo inteiro, se ramificando, diversificando e adquirindo diferentes nuances em cada época e lugar, incorporando variados discursos políticos, econômicos, religiosos, culturais e até raciais. De certo modo, podemos propor que o texto de Manson participa amplamente dessa matriz discursiva, arvorando-se em porta-voz da civilização e do progresso, emitindo retumbantes julgamentos e dando uma paternalista e condescendente bronca n o "povo brasileiro", esse ente abstrato. Para nos ajudar, é claro.

Enfim, precisamos criar nosso próprio paradigma civilizacional, não apenas seguir cegamente um receituário pronto para consumo.  Sigamos à parte final dessa já longa reflexão.

3 – A recepção brasileira do texto
Para fechar, convém indagar as razões pelas quais o texto de Manson encontrou tamanha repercussão entre nós. Em primeiro lugar, como já observou um texto interessante, embora um tanto superficial e recheado de clichês, o discurso de Manson vem ao encontro do que muitos brasileiros já pensavam antes, oferecendo uma ratificação externa a essas opiniões.

Todavia, o problema não é somente esse; a grande questão é: por que tantos brasileiros atribuem valor tão expressivo à opinião de um americano que diz ter morado poucos anos no Brasil? Seria nosso famoso “complexo de vira-lata” atuando? Sem dúvida, mas não apenas.

A chave me parece estar na nacionalidade do autor. É fácil imaginar um contraponto: se um nigeriano, um congolês, um indonésio ou um peruano tivesse escrito uma “carta aberta” expressando os mesmos pontos de vista que Manson, o texto encontraria a mesma ressonância? Me parece que não. Muitos brasileiros perguntar-se-iam: “quem esse nigeriano/congolês/indonésio/peruano pensa que é?!”. As razões são relativamente complexas, mas não é difícil resumi-las: aceitamos ouvir opiniões semelhantes de um americano, um francês, um alemão, um suíço e outros, porque nos relacionamos com esses povos de modo deferente, e, sejamos sinceros, subserviente. Toleramos (e até aplaudimos, curtimos, compartilhamos) o que jamais aceitaríamos de outros. Aliás, é curioso notar que dificilmente um brasileiro criticaria os americanos no tom paternalista, condescendente e sapiencial empregado por Mason. Até utilizaríamos esse mesmo tom – para com nigerianos, congoleses, indonésios, peruanos...

Tudo isso convida a repensar nosso “complexo de vira-lata”. Como quase tudo na vida, esse “complexo” não é algo autossuficiente; ele é relacional, à medida que participa de uma série de relações historicamente estabelecidas entre o povo brasileiro e o restante do mundo. Somos submissos a quem está “acima” e arrogantes com quem está “abaixo”; "vira-latas" para um lado, "rottweiler" para o outro. E isso, no fundo, é ainda mais desagradável – assustador, até – que a versão standard do “complexo de vira-latas”.

Concluindo, nada disso quer dizer que nunca devamos ouvir opiniões estrangeiras. Pelo contrário, muitos estudiosos de diversas nacionalidades e disciplinas contribuíram e contribuem enormemente para pensar o Brasil ou a América Latina, como Claude Lévi-Strauss, Charles Boxer, Stuart Schwartz, Richard Morse, Thomas Skidmore, Serge Gruzinski, Frédéric Mauro, Kenneth Maxwell, Geoffrey Needell, entre muitos outros. Mas uma coisa é dar ouvidos a um intelectual conhecedor de nossa história e de nossos processos sociais; abaixar a cabeça diante das opiniões de um “gringo” leigo e arrogante como esse tal Mark Manson é outra coisa inteiramente diferente..

Luiz F. F. Tavares é professor de História das redes FAETEC-RJ e SME-RJ, doutor em História pela Universidade Federal Fluminense e pós-doutorando em Antropologia Social pelo Museu Nacional

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