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sábado, 27 de dezembro de 2014

Poder e violência

Extratos de O Reino de Deus está em vós, de Tolstói:

"Se o trabalhador não tem terra, se ele é privado do direito mais natural, o de extrair do solo seu sustento e de sua família, não é porque o povo assim queira, mas porque determinada classe - os proprietários fundiários - tem o direito de contratar ou não o trabalhador. E esta ordem de coisas contra a natureza é mantida pelo exército. Se as imensas riquezas acumuladas pelo trabalho são consideradas pertencentes não a todos, mas a alguns; se o pagamento dos impostos e seu uso são abandonados ao capricho de alguns indivíduos; se as greves dos operários são reprimidas e as dos capitalistas protegidas, se determinados homens podem escolher as formas de educação (religiosa ou leiga) dos jovens; se certos homens têm o privilégio de fazer leis às quais todos os outros devem se submeter, e de assim dispor dos bens e da vida de cada um, tudo isso acontece não porque o povo queira e porque deve acontecer naturalmente, mas porque os governos e as classes dirigentes assim querem, para seu proveito, e o impõem por meio de uma violência material.

Todos sabem disso, ou, se não o sabem, saberão à primeira tentativa de insubordinação ou de mudança nesta ordem de coisas.

[...]

Os governos afirmam que os exércitos são necessários, por toda parte, para a defesa externa. É falso. São principalmente necessários contra os próprios cidadãos, e cada soldado participa à revelia das violências do Estado sobre os cidadãos.

Para convencer-se desta verdade basta lembrar o que se comete em cada Estado, em nome da ordem e da tranquilidade do povo, servindo-se sempre do exército como instrumento. Todas as brigas internas de dinastias ou de partidos, todas as execuções capitais que acompanham essas agitações, todas as repressões de revoltas, todas as intervenções da força armada para dissipar os grupos ou para impedir as greves, todas as extorsões de impostos, todos os obstáculos à liberdade do trabalho, tudo isto é feito diretamente com a ajuda do exército ou da polícia, apoiada pelo exército. Cada homem que cumpre o serviço militar participa de todas essas pressões que, às vezes, lhe parecem ambíguas, mas, na maior parte do tempo, absolutamente contrárias à sua consciência".

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Contradições: vida e consciência

Extratos de O Reino de Deus está em nós (1895), de Tolstói:

"O operário de nosso tempo, ainda que seu trabalho seja menos penoso do que o do escravo antigo, ainda que obtenha a jornada de oito horas e o salário de poucos rublos por dia, não deixaria de sofrer porque, fabricando objetos dos quais não usufrui, trabalha não para si e voluntariamente, mas por necessidade, para a satisfação dos ricos e dos ociosos, e para o proveito de um só capitalista, proprietário de fábrica ou de indústria.  Sabe que isto ocorre num mundo em que é reconhecida a máxima científica de que só o trabalho alheio é uma injustiça, um delito punido por lei, num mundo que professa a doutrina de Cristo, segundo a qual somos todos irmãos, e que não se reconhece ao homem outro mérito senão o de vir em auxílio do próximo, em vez de explorá-lo.

Ele sabe tudo isso e não pode deixar de sofrer devido a essa flagrante contradição entre o que é e o que deveria ser.

[...]

O homem da classe que se diz culta sofre até mais com as contradições da vida. [...] O homem dotado de uma consciência impressionável não pode deixar de sofrer com tal vida. O único meio para livrar-se desse sofrimento é impor silêncio à própria consciência; mas se alguns conseguem isso, não conseguem impor silêncio a seu medo.

[...]

Mas todos sabemos como são feitas essas leis. Estivemos todos nos bastidores: sabemos que são geradas pela cobiça, pela astúcia, pela luta entre os partidos; que nelas não há e não pode haver justiça real. Por isso, os homens de nosso tempo não podem crer que a submissão às leis sociais e políticas satisfaça às exigências da razão e da natureza humana. Os homens de há muito sabem que é irracional submeter-se a uma lei cuja verdade é dúbia e, portanto, não podem deixar de sofrer ao se submeterem a uma lei cujo bom-senso e cujo caráter obrigatório eles não reconhecem.

[...]

Cada homem de nosso tempo, se penetrarmos na contradição entre sua consciência e sua vida, encontra-se na mais cruel situação. [...] Essa contradição, requinte de todas as outras, é tão terrível que viver participando dela só é possível caso não pensemos, caso a esqueçamos. [...] Só essas razões podem explicar a intensidade terrível com a qual o homem moderno procura entorpecer-se com o vinho, o fumo, o ópio, o jogo, a leitura dos jornais, com viagens e com toda espécie de prazeres e espetáculos. [...] E todos os homens de nosso tempo encontram-se nessa situação; todos vivem numa contradição constante e flagrante entre sua consciência e sua vida".

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

A miséria da propaganda

Normalmente os comerciais - especialmente os televisivos - me provocam profunda irritação. Às vezes sinto verdadeira raiva das empresas anunciantes e das agências publicitárias!

Ontem me dei conta da razão pela qual a publicidade costuma me inspirar tamanha aversão: é sua pressuposição implícita de que podemos ser manipulados de forma tão grosseira, com discursos infantilizadores. Pior ainda é perceber quanta gente é capturada por artimanhas tão superficiais...

De maneira descarada, a propaganda se apropria de desejos, receios, sentimentos, valores, linguagens, ideias e ideais para vender produtos e promover mercadorias. Isso é simplesmente aviltante, é sequestrar o que há de mais nobre ou mais delicado para finalidades espúrias.

Na verdade, não tenho nada contra a publicidade em si. Ela pode ser útil e até necessária - por exemplo, nas campanhas de conscientização para causas importantes (sociais, sanitárias, políticas, etc). Até mesmo a propaganda comercial facilita o acesso do consumidor a produtos e serviços de seu interesse, desde filmes a aparelhos eletrônicos, passando pelo novo restaurante do bairro. O que me causa indignação é a flagrante manipulação presente em boa parte das peças publicitárias, recorrendo aos golpes mais baixos, do sentimentalismo familiar barato ao apelo erótico gratuito, passando pelo humor idiota. Acho que é por esse mesmo motivo que me irrito com vendedores insistentes e seus discursos inconsistentes.

Me desculpem pelo desabafo!

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Escalas de observação: tempo, espaço, sujeitos e objetos

Dedicado a meu orientador, Rodrigo Bentes Monteiro

Levei cerca de 4 anos produzindo minha tese de doutorado. Meu objeto de pesquisa (a presença francesa na América e no Atlântico) teve por corte cronológico cerca de um século, entre os reinados de Francisco I e Luís XIII. Grosseiramente falando, temos uma relação temporal de 1:25, ou 1 ano de pesquisa para 25 anos de período pesquisado, permitindo que 100 anos de experiências "coubessem" em 4 anos de doutorado e 400 páginas de tese. Tal operação intelectual implica um drástico processo de "compressão de informação". Foi necessário selecionar, cortar e recortar fontes, dados, personagens, temas, problemáticas, conexões... A contragosto, precisei deixar muita coisa de lado - com as devidas "tesouradas" de meu orientador e da banca de qualificação. É preciso muito esforço e alguma dor para "comprimir" todo um mundo de experiências - um século, dois continentes, um oceano - em poucas centenas de páginas.

Mas não é problema apenas de historiadores; existem outros ofícios, com outras escalas. Pensemos no microbiologista: em suas pesquisas, ele lida com organismos infinitamente menores que ele mesmo, seres de vida dramaticamente efêmera. De certo modo, ele opera uma "descompressão de informação", tentando tornar experiências microscópicas no tempo e no espaço inteligíveis para seres macroscópicos - nós. Por sinal, as brevíssimas dimensões temporais com que lida tornam tanto possível quanto necessário repetir experimentos ad nauseam, de modo a montar os quebra-cabeças do infinitamente pequeno. Tais questões também servem para inúmeros cientistas, como os físicos dedicados às dinâmicas quânticas ou à física de partículas, entre tantos outros.

Creio que o extremo oposto esteja nos ramos da astronomia, da astrofísica, da cosmologia e afins. Saltamos do ínfimo ao infinito, às temporalidades e distâncias que em tudo extrapolam as dimensões humanas e terrestres. Considerando que a astronomia metodicamente científica conta cerca de 400 anos, como dar conta de fenômenos estimados na ordem dos bilhões de anos? Quantas existências de astrônomos seriam necessárias para acompanhar a vida e a morte de uma única estrela? Aqui é a observação simultânea de fenômenos similares - às vezes escassos - que busca resolver os enigmas do infindável. É o supremo esforço de "compressão de informação", tentando reduzir os mistérios do cosmo à nossa limitada ciência...

Concluindo, creio que toda operação científica precise passar por operações semelhantes, no sentido de mediar as diferentes escalas e dimensões espaço-temporais que separam sujeito e objeto, de algum modo tentando estabelecer relações, equivalências e correspondências entre as diversas experiências e perspectivas possíveis acerca da realidade. Vale lembrar, segundo as teorias da computação, que toda operação de "compressão" e "descompressão" implicam na perda ou simplificação de informações, levando a reduções de nitidez e precisão.

O conhecimento é uma eterna tentativa de abraço entre sujeito e objeto, uma superação de distâncias nunca realizada por completo, mas sempre aprofundada.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

O grande marginal

Esta é a história de um marginal:

Andava em péssimas companhias.

Não seguia os valores das pessoas respeitáveis.

Seus comportamentos, atitudes e palavras chocavam e incomodavam muita gente de bem.

Defendia e divulgava ideias subversivas.

Questionava as leis e as autoridades.

Muitos tinham medo dele; alguns o odiavam.

No fim, acabou preso, torturado e condenado à morte.

Ficou conhecido como Jesus Cristo.

"Jesus carregando a cruz", pintura de Hyeronimus Bosch.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Eles

Eu tenho medo. Muito medo.


Eles são muito perigosos. Eles são violentos e cruéis. Eles odeiam nossa civilização, Eles odeiam nossos valores. Eles querem destroçar, esmagar e queimar tudo que amamos. Eles desejam matar nossos anciãos, estuprar nossas mulheres, escravizar nossas crianças. Eles sonham em dançar sobre nossos túmulos.


Por que Eles nos odeiam tanto?

Eu tenho medo. Muito medo.


De dia, Eles perturbam meus pensamentos. À noite, Eles povoam meus pesadelos. Eu sei, eles estão lá, em seus esconderijos, planejando dia e noite como acabar conosco. Eles tramam suas teias como aranhas famintas e maldosas. Eu sei, eu sei. De dia, Eles pensam em nossa destruição; à noite, Eles sonham com nossa ruína.


Por que Eles nos odeiam tanto?

Eu tenho medo. Muito medo.



Precisamos fazer alguma coisa, antes que Eles nos destruam. Temos que agir mais rápido que Eles, temos que atacar primeiro. É a única maneira de sobreviver, de evitar nosso fim, de preservar nossa civilização, nossas crenças, nossos valores. A guerra é a única solução contra Eles. É lamentável, eu sei, mas Eles não deixam outra escolha. Não é possível dialogar com Eles. Eles são irracionais, perversos, traiçoeiros. Alguns entre nós discordam... Cegos... Sonhadores... Traidores! A guerra é terrível, mas necessária. Quem não está conosco, está com Eles, está contra nós. Contra Nós!


Por que Eles nos odeiam tanto?

Imagens: Detonação da bomba de Hiroshima (1945); Massacre de São Bartolomeu (Paris, 1572); Holocausto; Cruzadas; Perdas territoriais palestinas; Atentados do 11 de Setembro (2001)

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Ser povo

O lixeiro é povo. A médica é povo. O professor é povo. O negro é povo. O gay é povo. O cientista é povo. A diarista é povo. O intelectual é povo. O motorista é povo. A mulher é povo. O bancário é povo. A advogada é povo. O homem é povo. O garçom é povo. A criança é povo. O índio é povo. A artista é povo. O pescador é povo. O branco é povo. A vendedora é povo. O agricultor é povo...

Respiramos o mesmo ar. Bebemos a mesma água. Andamos nas mesmas ruas. Vemos o mesmo sol. Estamos todos no mesmo barco.

Não é o seu grau de instrução. Não é o seu salário. Não é o seu gênero. Não é o seu poder aquisitivo. Não é a sua religião. Ser povo é muito mais.

Ser povo é viver em igualdade. Ser povo é lutar pelos direitos de todos. Ser povo é buscar liberdade. Ser povo é pensar coletivamente. Ser povo é respirar fraternidade. Ser povo é "amar ao próximo como a si mesmo".

Eu sou povo. Você é povo. Ela é povo. Ele é povo. Nós somos povo!

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Kant e os fantasmas

Extraído de Sonhos de um vidente elucidados pelos sonhos da Metafísica (1776), de Immanuel Kant:

"A Filosofia, que não receia comprometer-se, examinando toda a sorte de questões fúteis, fica muitas vezes perplexa quando topa em certos fatos de que não se poderia duvidar impunemente e que não poderia crer sem se tornar ridícula. É o que acontece com as histórias de almas do outro mundo. Com efeito, não há censura que a Filosofia sinta mais do que a da credulidade e apego às superstições vulgares. Os que se dão facilmente o nome e o realce de sábios zombam de tudo aquilo que, inexplicável tanto para o sábio como para o ignorante, coloca-os ambos no mesmo plano. É por isso que as histórias de fantasmas são sempre ouvidas na intimidade e denegadas em público. Pode-se ter certeza de que jamais uma academia de ciências jamais escolherá tal assunto para um concurso; não por estar cada um dos membros dessa academia persuadido da futilidade e da mentira dessas narrativas, mas porque a lei da prudência põe sábios limites ao exame dessas questões. As histórias de fantasmas sempre encontrarão crentes secretos e serão sempre alvo, em público, duma incredulidade de bom tom.

Quanto a mim, a ignorância em que estou da maneira por que o espírito humano entra neste mundo e dele sai, impede-me de negar a verdade das diversas narrações que por aí são contadas".

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Mistérios do "nós"

"Nós" - curioso pronome.

Para existir, precisa que ao menos um "eu", um "tu" ou um "ele" se reúnam. No entanto, é um pronome "egocentrado" - não existe "nós" sem que um "eu" o enuncie, a partir de sua relação com os outros seres componentes do "nós".

Por outro lado, o "nós" pressupõe uma experiência partilhada entre o enunciador e outros seres (humanos ou não). Essa experiência pode ser efêmera ou duradoura. Posso dizer: "nós aguardávamos o médico" - eu e outros pacientes na sala de espera, que nunca nos vimos nem tornaremos a ver, mas partilhamos essa breve experiência. Por outro lado, posso dizer: "nós fomos ao cinema" - "eu" e minha esposa, casados há oito anos.

Por vezes, a experiência partilhada engendra identidades e solidariedades: "nós" que torcemos para o mesmo clube de futebol, "nós" que nascemos na mesma cidade, "nós" que estudamos na mesma escola, "nós" que oramos na mesma igreja, "nós" que temos a mesma opinião... Nesse sentido, o "nós" se torna uma força poderosa, capaz de mobilizar esforços e vontades. Mas também pode ser usado como objeto de insidiosas manipulações, por aqueles que manuseiam a retórica do "nós" apenas para atingir os interesses do "eu".

Também vale notar que nem sempre essa experiência partilhada supõe simultaneidade. "Eu" e "Ivo" estudamos no mesmo colégio; "Ivo" foi aluno 50 anos antes de mim - ainda assim, "nós" estudamos nas mesma escola. Desse modo, o "nós" unifica seres separados no tempo ou no espaço. Também não é necessário pertencer à mesma espécie: "nós" atravessamos a rua - "eu" e meu cãozinho. Muitas vezes o "nós" se configura através de antagonismos: "nós" brigamos, "nós" discordamos - paradoxais experiências de oposição compartilhada.

Às vezes o "nós" é evidente; às vezes precisa ser descoberto. Mas no fundo, não seria a vida nesse mundo um perpétuo reinventar do "eu" no "nós" - e vice-versa?

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Quanto vale o dinheiro?

Nos últimos séculos nossa economia passou por profundo processo de monetarização, transformando o dinheiro na forma de riqueza mais valorizada socialmente. De fato, o dinheiro se tornou a riqueza por excelência; atualmente, riqueza e dinheiro são pensados quase como sinônimos.

Nesse processo, o dinheiro adquiriu o status de valor em si, ele deixou de ser um meio para se tornar um fim, a própria métrica e medida de tudo que existe no mundo. E, ao menos para o pensamento econômico ortodoxo, o dinheiro em si vale mais que tudo: minérios, plantas, comida, ar, água, tempo, arte, amizade, amor, família, alegria... De certa maneira, o dinheiro vale mais que vidas humanas - embora isso nunca seja admitido em alto e bom som.

Apesar de tudo, obviamente, ninguém come, bebe ou respira dinheiro. Precisamos urgentemente que as teorias e práticas econômicas assumam um caráter supramonetário, que se tornem capazes de pensar o trabalho e a riqueza como algo que está além do dinheiro e não pode ser reduzido à simplória abstração monetária.

De certo modo, creio que a maior falha das economias socialistas e comunistas do século XX foi justamente sua incapacidade de pensar e atuar em termos supramonetários - não estavam tão distantes quanto supunham das economias capitalistas; por sinal, a China atual não se encontra nada distante...

Termino essa breve divagação citando James Buchan, no excelente Desejo congelado, obra em que discute o significado do dinheiro:

"[...] o dinheiro deve sempre estar estável ou em movimento e precisa estar sempre na posse de alguém, para evitar que a sua essência monetária evapore: ao passo que a águia continua sendo a águia qualquer que seja a sua atividade ou domicílio. Isso é real como um beijo de pai é real, precisamente porque não tem preço. Suspeito que, quando os elementos da natureza se tornarem mais escassos, se tornarão não caros, mas literalmente sem preço [...]".

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Desejos e escravidão

Trecho de Cidades invisíveis, de Ítalo Calvino; grifo meu:

“A três dias de distância, caminhando em direção ao sul, encontra-se Anastácia, cidade banhada por canais concêntricos e sobrevoada por pipas. Eu deveria enumerar as mercadorias que aqui se compram a preços vantajosos: ágata, ônix, crisópraso e outras variedades de calcedônia; deveria louvar a carne do faisão dourado que aqui se cozinha na lenha seca da cerejeira e se salpica com muito orégano; falar das mulheres que vi tomar banho no tanque de um jardim e que às vezes convidam – diz-se – o viajante a despir-se com elas e persegui-las dentro da água. Mas com essas notícias não falaria da verdadeira essência da cidade: porque, enquanto a descrição de Anastácia desperta uma série de desejos que deverão ser reprimidos, quem se encontra uma manhã no centro de Anastácia será circundado por desejos que se despertam simultaneamente. A cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é desperdiçado e do qual você faz parte, e, uma vez que aqui se goza tudo o que não se goza em outros lugares, não resta nada além de residir nesse desejo e se satisfazer. Anastácia, cidade enganosa, tem um poder que às vezes se diz maligno e outras vezes benigno: se você trabalha oito horas por dia como minerador de ágatas, ônix, crisóprasos, a fadiga que dá forma aos seus desejos toma dos desejos a sua forma, e você acha que está se divertindo em Anastácia, quando não passa de seu escravo”.

sábado, 23 de agosto de 2014

Gentalha - Seu Madruga e a violência na América Latina

Como já discuti em outros posts, a querida vila do Chaves me parece um ótimo reflexo das dinâmicas sociais na América Latina. Ultimamente tenho prestado bastante atenção às representações da violência na obra de Bolaños; por sinal, a "boa vizinhança" é ambiente extremamente violento, em que pese a estética caricata e estilizada sob a qual essa violência se apresenta. A priori, vale ainda observar que o seriado apresenta normalmente dois tipos de agressão, que podemos classificar respectivamente como intencional e acidental. Como veremos, essa distinção é bastante relevante.

Recentemente me dei conta de um detalhe revelador: Seu Madruga é o fulcro da violência em Chaves, através do qual se articulam as agressões intencionais praticadas na vila, atuando como ponto de convergência entre o mundo das crianças e o dos adultos. Recontrapuxa!

Comecemos pelo mundo dos adultos. Não são incomuns as agressões entre adultos em Chaves, mas na maior parte das vezes são acidentais - como o significativo beliscão do Prof. Girafales em Dona Clotilde (cujas conotações sexuais não pretendo discutir aqui) ou as eventuais pancadas de Dona Florinda em Seu Barriga ou Prof. Girafales. O único adulto agredido de forma intencional e consistente é Seu Madruga: pelos mais variados motivos, o pobre homem já apanhou de praticamente todos os adultos da série, como Prof. Girafales, Seu Barriga, Dona Glória e até mesmo da apaixonada "Bruxa do 71"; sua principal agressora, desnecessário lembrar, é Dona Florinda. E lembremos: ela bate nele por ser gentalha. Homem pobre, sem instrução e habitualmente desempregado (por opção), Seu Madruga é por excelência a vítima de agressões no mundo dos adultos.

Certa situação é particularmente elucidativa: em determinado episódio, Seu Barriga agride Quico acidentalmente, mas, como de costume, Dona Florinda reage batendo em Seu Madruga. O equívoco é desfeito logo depois, mas a zelosa mãe não pede desculpas, apenas murmurando entre dentes que "errar é humano". Ainda mais sugestivo é o fato de, devidamente esclarecida, ela não agredir Seu Barriga. O pobre Madruga é passível de agressão, mas não Barriga, proprietário do cortiço; ele não é gentalha. Não é difícil perceber o paralelo com a violência nas sociedades latino-americanas.


Quando passamos ao mundo das crianças, a situação se inverte: Seu Madruga é o principal agressor adulto. São raras as ocasiões em que outros adultos batam nas crianças, mas ele distribui pancadas entre Chiquinha, Quico e Chaves. Por vezes suas agressões são muito violentas, como os murros que aplica na cabeça de Chaves ou quando apaga um cigarro (!) na mão de Quico. Ora, Seu Madruga raramente reage à violência dos adultos, mas canaliza sua raiva para as crianças - lembrando as reflexões de Foucault sobre a "microfísica do poder". Também não é situação muito diferente do que vivenciamos na América Latina - geralmente a corda arrebenta para o lado dos mais frágeis socialmente, especialmente as crianças e mulheres; o quadro muitas vezes se agrava entre as camadas menos instruídas da população. E, de fato, não são raros os episódios em que Seu Barriga e principalmente o Prof. Girafales repreendem Seu Madruga, homem menos "esclarecido", pela violência que usa contra as crianças. Reside aí profunda ironia, já que os mesmos não se poupam de agredir o próprio Madruga, e muito menos se incomodam com a cruzada de Dona Florinda contra a gentalha. Pelo contrário, em algumas situações Prof. Girafales aconselha sua amada a não bater no pobre homem apenas para não "sujar suas mãos com semelhante porcaria".

No entanto, a relação de Seu Madruga com o mundo infantil é marcada por outra inversão: a única criança que agride deliberadamente um adulto é Quico; ainda por cima, essa violência é praticada de modo sistemático. "Gentalha, gentalha!" - os gritos do menino não poderiam ser mais expressivos. Desde criança, Quico aprende que a gente "da alta" pode bater na gentalha. Por sinal, a violência exercida pelo garoto é extremamente significativa, à medida que em muitas ocasiões ele sabe que Seu Madruga é inocente, mas o agride instintivamente ao ouvir as palavras mágicas de sua mãe: "Vamos, Quico...". Em muitas situações a violência de Dona Florinda contra Seu Madruga é gratuita, e o filho a segue pelo mesmo caminho. Seu Madruga, Quico e Dona Florinda constituem o tripé que sustenta a violência em Chaves, numa dinâmica estribada nas relações sociais tensas vividas na América Latina. Na verdade, vejo Quico como um menino de bom coração, mas que recebe de sua mãe uma educação extremamente preconceituosa, arrastado a um precoce aprendizado da violência - nesse sentido, vale lembrar algumas observações de Gilberto Freyre no clássico Casa-grande & senzala.


Concluo esse já longo texto lembrando uma das cenas mais belas, brutais e pungentes do seriado. Em certo episódio, Chaves faz um comentário jocoso a respeito de Dona Florinda, provocando risos descontrolados em Seu Madruga. A mulher bate nele repetidas vezes, com agressividade crescente, mas o homem continua gargalhando, com intensidade cada vez maior, indiferente à violência de que é vítima. Irritada e cansada, Dona Florinda se retira, acompanhada por Quico - não sem seu habitual "gentalha, gentalha"! Seu Madruga continua rindo, triunfante. Há um quê de metalinguístico nessa cena, onde o seriado humorístico celebra a gargalhada vitoriosa contra a violência, o espírito inabalável ante a força, o riso em seu pleno potencial libertador.

Possa a gentalha latino-americana rir cada vez mais escancaradamente na cara dos tiranos de plantão.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Erro e responsabilidade

"Ide viver escondidos, prudentes, contentes, infames!"
Victor Hugo


Acertar sempre é coisa de gente irresponsável.

Obviamente devemos tomar nossas decisões com o máximo de conhecimento e discernimento possível. No entanto, nem todo o conhecimento do mundo pode garantir o acerto, pois, no fim das contas, tudo é imprevisível. O desejo de "acertar sempre" não passa de quimérica ilusão de controle.

E assim, diante do imprevisível, o medo de errar nos imobiliza. Preferimos permanecer no conforto da insatisfação imóvel a agir correndo o risco do erro; por temor de errar, perdemos a oportunidade de acertar. Parando para pensar, é uma atitude pouco responsável, de abstenção diante de realidades que nos cobram atitudes. Só podemos "acertar sempre" se deixarmos de lado nossa responsabilidade enquanto pessoas, profissionais e, principalmente, cidadãos.

Quem quer ser realmente responsável perante a coletividade e a própria consciência corre riscos, age e, muitas vezes, erra. Mas de vez em quando acaba acertando...

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Carnaval bíblico

Na recente inauguração do "Templo de Salomão" (sic) da Igreja Universal o aspecto que mais despertou minha atenção foi o tom carnavalesco da coisa. Não consigo descrever minha sensação ao ver todas aquelas pessoas fantasiadas, aquele arremedo canhestro de Antigo Testamento, dignos de escola de samba do grupo Z ou de novela  (especialmente da Record).

Mais perto da paródia que da reconstituição histórica, tanto o edifício quanto a cerimônia me lembraram outras falsificações, produzidas em nome do entrenimento, como os parques temáticos ruins, a arquitetura de Las Vegas ou os patéticos filmes bíblicos transmitidos na Páscoa. Também tem um quê de shopping center e das fantasias usadas na publicidade barata, no melhor estilo de Madureira. É a religião em forma de espetáculo kitsch, de produção trash.

Na verdade, creio que o episódio e o edifício são representantes fiéis da Igreja Universal, com sua ética consumista e estética publicitária. O Templo (sic) de Salomão é, de fato, o monumento supremo da fé transformada em mercadoria. Mas, como diria a Dilma, "feliz é a nação cujo Deus é o senhor".

Tragam logo o Juízo Final, por favor, mas dessa vez produzido por George Lucas...

domingo, 10 de agosto de 2014

A sociedade dos invejosos

Há mais de um ano tenho observado certa tendência na cultura cotidiana, através das conversas de meus alunos, de diálogos entreouvidos nos transportes coletivos, da publicidade e mesmo do tal funk ostentação (que todos temos o desprazer de conhecer): estamos vivendo numa cultura obcecada pela inveja. Volta e meia vejo pessoas se queixando de que são invejadas por fulano ou beltrano, pelos motivos mais diversos e mais estapafúrdios. Obviamente não se trata de novidade, mas creio que estamos atingindo um nível patológico.

Em que pese o tom quase sempre queixoso, tenho a nítida impressão de que muitas pessoas desejam provocar inveja em terceiros e se sentem (quase) secretamente lisonjeadas por esses sentimentos. De fato, nossa cultura me parece nutrir e estimular um desejo vagamente consciente e inconfessável por ser invejável e, de preferência, invejado. Nessa escala de valores, a inveja alheia quase equivale a uma homenagem involuntária, certidão pública de sucesso - não ser invejado por ninguém equivale a um fracasso na sociedade de ostentação.

Não é difícil relacionar essa tendência ao estímulo da publicidade e das mídias sociais. Por um lado, a inveja sempre foi muito usada na propaganda - lembram da tesourinha do Mickey? Por outro lado, as redes sociais e suas dinâmicas de superexposição e autopromoção constituem outro impulsionador - muita gente busca essas redes mais para ser visto que para ver; cada foto postada implora por atenção, admiração e, no limite, inveja.

No fundo, tudo isso nos remete à questão sempre presente do culto e cultivo intensivo da imagem pessoal, que se torna cada vez mais o frágil sustentáculo da autoimagem e da autoestima. A inveja do outro se torna mais um dos espelhos de Narciso buscados com tanta avidez pela gente de nosso tempo. Não à toa a propaganda de certo automóvel atualmente veiculada usa o slogan: "O carro onde você quer se ver"...

E aí entra outra questão problemática: a inveja é sentimento raramente confessado e declarado abertamente; o (suposto) invejoso é quase sempre imaginado como tal pelo (suposto) invejado, sem muita objetividade. Em suma, as pessoas estão neuróticas por um sentimento cuja existência social só se manifesta publicamente em terceira pessoa.

Concluindo, nessa cultura de espetacularização da vida privada e da imagem pessoal, inveja e exibicionismo caminham lado a lado - Freud provavelmente explica...

domingo, 3 de agosto de 2014

Brasil: entre ditadura e tirania

Por razões óbvias, o termo "ditadura" ocupa lugar de destaque no vocabulário politico brasileiro. No entanto, já faz algum tempo que o termo me incomoda, como uma muleta conceitual que muitas vezes limita nossos debates e obscurece diversas questões.

De fato, há poucos anos tive a oportunidade de assistir excelente conferência do Prof. Mario Turchetti em que ele criticava justamente o empobrecimento do léxico político contemporâneo, que poderia ser enriquecido e revitalizado pelo reencontro com tradições mais antigas do pensamento ocidental. É justamente o que proponho aqui: recuperar a noção de "tirania" para pensar o contexto brasileiro atual.

A meu ver, um dos maiores inconvenientes da terminologia em torno de "ditadura" é seu forte teor legalista, que só nos deixa duas opções: ou temos um contexto em que o sistema legal e político se configura claramente como uma ditadura, ou usamos a noção como mera figura de linguagem, cada vez mais empobrecida de significados.

A noção de "tirania" me parece apontar caminhos para além desse dilema. Como observa Arlette Jouanna, trata-se de problema muito discutido desde a Antiguidade até a Idade Moderna. É interessante observar que a escolástica medieval, especialmente João de Salisbury e Tomás de Aquino, teve o cuidado de diferenciar dois gêneros de tirania: existiriam o "tirano de usurpação" e o "tirano de exercício".

A tirania por usurpação seria caracterizada pela tomada violenta e ilegítima do poder, aproximando-se assim da ideia de ditadura justamente pela ênfase nos aspectos legais. Por outro lado, a tirania por exercício se dá quando uma autoridade legalmente instituída realiza mau exercício do poder, levando-nos da problemática legalista à problematização moral.

Nesse sentido, me parece rico pensar o contexto atualmente vivido no Brasil como uma tirania por exercício, à medida que nossas autoridades eleitas dentro das leis vigentes vêm nitidamente usando seu poder em detrimento dos direitos civis e políticos dos cidadãos, especialmente através de inúmeros abusos cometidos na esfera estadual com absoluta conivência das autoridades federais.

Nosso país não tem hoje de fato uma ditadura, mas os tiranos estão no poder.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

"Protestar não é crime" - Um relato

Ontem fui com minha amiga Rosiane ao ato nacional "Protestar não é crime". Embora não tenham comparecido os quatro mil previstos, foi uma bonita manifestação. Saímos da Candelária, entrando pela Rio Branco e dobrando na Almirante Barroso, até o Tribunal de Justiça. Até a hora em que eu e Ro viemos embora, a polícia ainda não havia provocado nenhum tumulto - apesar do efetivo gigantesco do Choque. Éramos gente de todas as tribos, de todas as opiniões, de todas as categorias, de todos os posicionamentos políticos, unidos por uma causa: LIBERDADE. Éramos o povo, oceano onde se afogam todos os tiranos, como dizia Victor Hugo.

Tenho duas coisas a destacar sobre o ato. Em primeiro lugar, fiquei muito contente ao ver alguns funcionários da COMLURB participando da manifestação. É bonito ver uma categoria tão desvalorizada e geralmente associada pelo preconceito social à ignorância conquistando seu devido lugar no concerto da cidadania - principalmente depois da belíssima e magistral greve que eles conduziram esse ano. São sinais de um real despertar dos trabalhadores.

Também fiquei muito feliz ao conversar com dois jovens, mal saídos da adolescência. Cheios de dúvidas, com posicionamentos políticos hesitantes, mas cheios de entusiasmo, aprendendo na rua a ser cidadãos, buscando, aos tateios, mas cheios de coragem, os significados da cidadania.

O Brasil está repleto de amanhã.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Professores, traficantes e o mito de Prometeu

"Cuide do seu filho, antes que um professor de História ou de Filosofia o adote".

A infeliz citação reproduz (aproximadamente) o discurso de uma suposta poetisa, psicanalista e filósofa em recente debate radialístico. Como muitos devem ter percebido, trata-se de paráfrase de um slogan que saiu de moda, mas fazia muito sucesso alguns anos atrás:

"Cuide do seu filho, antes que um traficante o adote".

A comparação entre professor (de História ou Filosofia) e o traficante é triste, mas esclarecedora, à medida em que condensa de forma exemplar uma gama complexa de discursos que vêm sendo formulados desde a explosão de manifestações que ganharam as ruas do Brasil desde junho de 2013. Vamos por partes.

Em primeiro lugar, temos o discurso que tende a criminalizar as manifestações e as reivindicações populares, confundindo-as propositalmente com o vandalismo, que ocorre pontualmente - geralmente num circuito de retroalimentação e interdependência com a violência policial. Aliás, embora seja professor de História, não apoio a ação violenta, nem a tática black bloc. Assim, no dizer da distinta "pensadora" brasileira o manifestante é confundido com o vândalo, que por sua vez é confundido com o traficante, criminoso por excelência no imaginário brasileiro.

Por outro lado, a fala da poetisa [sic] também traduz um velho discurso que tende a ver os professores da área de humanas como "revolucionários" e subversivos em potencial. Mais ainda, temos visto uma postura nitidamente persecutória em relação ao magistério, perceptível desde a violência policial contra professores, prisão política de diversos profissionais da área, tentativa de associar o sindicato dos profissionais da Educação aos "vândalos" fabricados pela mídia ou projetos como o famigerado "Escola sem Partido", do pequeno Bolsonaro. Assim, o professor se equipara ao manifestante, ao vândalo e, por fim, ao traficante - todos criminosos.

Talvez esse discurso seja bastante influenciado pelas grandes greves do magistério em 2013, e todo o circo midiático, político e policial montado em torno delas, com direito a Cinelândia cercada e bombardeio aéreo de lacrimogênio: tudo pela Educação! No entanto, creio que a ferida é ainda mais profunda, ligada ao movimento geral de sucateamento da educação pública e de desvalorização da profissão docente. Mais ainda, revela o pavor que os poderosos sentem contra a educação e o esclarecimento das massas.

Tudo isso nos leva ao mito grego de Prometeu, o titã que roubou o fogo dos deuses, símbolo da luz do conhecimento, entregando-o aos mortais. A punição para esse grave crime é uma das mais severas e cruéis registradas pela mitologia: o titã foi acorrentado a um rochedo no alto do Cáucaso, sendo diariamente visitado por um abutre que devora seu fígado, que cresce durante a noite apenas para renovar seu sofrimento no dia seguinte, por toda a eternidade.

Na Grécia antiga, como no Brasil atual, oferecer o fogo do conhecimento ao povo é crime grave, tão grave quanto traficar drogas, praticar atos de vandalismo ou exercer pacificamente o direito democrático de reivindicar.

terça-feira, 1 de abril de 2014

A Marcha da Família e o Muro de Berlim

Felizmente a Marcha da Família organizada no domingo retrasado foi um belíssimo e retumbante fiasco. Confesso que o resultado me deixou aliviado, mas também bastante surpreso. Não imaginei que o movimento seria tão esvaziado, especialmente considerando as opiniões que vemos por aí, de um conservadorismo quase chulo. Não consigo deixar de me indagar: por quê?

Alinhavar explicações de ordem causal é sempre complicado em História - aliás, no campo das humanidades, em geral. No entanto, parece-me oportuno traçar algumas considerações acerca da situação, especialmente comparando a marcha original e seu triste remake.

Antes de tudo, me parece essencial lembrar a diferença das conjunturas internacionais em torno dos dois episódios, aspecto que me parece de altíssima relevância. Afinal de contas, a marcha de 64 se deu em plena Guerra Fria, em meio à atmosfera de polarização ideológica que se sabe. A "ameaça comunista" era muito mais tangível e, em certo sentido, real. A Revolução Cubana estava logo na esquina, ora bolas! Creio que faltou à versão atualizada esse apelo de perigo iminente. Em tempos em que a maior potência "socialista" fabrica i-phones, quem vai dar crédito aos psicóticos delirante que vêm o neoliberalíssimo PT como um antro de "stalinistas bolivarianos" [sic]? O Muro de Berlim caiu, mas os "marchadeiros" não parecem ter percebido.

Por outro lado, acho que faltou UDN! Os partidos de oposição foram suficientemente espertos para não endossarem essa roubada, assim como a grande mídia. Nos tempos que correm, nem a Globo quer segurar essa batata quente; eles sabem que a verdade é dura... Também vale lembrar que a Dilma não é exatamente um Jango.

Por fim, o panorama religioso do Brasil mudou muito nos últimos 50 anos. Em 1964, a Igreja Católica era claramente hegemônica, em todos os sentidos: no número de fiéis, em sua relevância política e social, em seu prestígio cultural arraigado. Vivemos hoje num país sem identidade religiosa prediminante, marcado por ampla diversidade de credos e cultos. Por sinal, a própria Igreja Católica mudou muito em suas relações com a política nacional, mantendo uma presença muito mais sutil. Além disso, os católicos não são mais os mesmos; o processo de secularização da cultura brasileira se encontra muito mais acentuado. Ouso imaginar que haja hoje muito menos católicos "praticantes" e que esses "pratiquem" muito menos que os de 64.

Em suma, acho que a marcha de 2014 evidencia muitas das mudanças políticas, sociais e culturais vividas  nas últimas décadas, no Brasil e no mundo.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Moda e Arte

Trechos de A linguagem das coisas, de Deyan Sudjic

"Moda não é arte. Mas nunca antes a moda se esforçou tanto para sugerir que poderia ser.

[...]

A pergunta a fazer não é tanto: moda é mesmo design?, mas sim: o que a moda fez com o design? E, aliás: o que fez com a arte, a fotografia e a arquitetura?

[...]

A moda, segundo os puritanos, é o que costumava ser chamado de arte menor. Mas, para o bem ou para o mal, não há nada de menor na moda, que injeta sexo, status e celebridade diretamente na veia. E foi essa combinação que conferiu uma quantidade enorme de poder, tanto financeiro quanto cultural, a seus controladores. Juntando tudo isso, não surpreende que a moda tenha ficado simplesmente muito grande e muito poderosa para ser descartada como um frívola questão secundária. A moda tem a capacidade de apertar todos os botões da vida contemporânea.

[...]

Miuccia Prada usa a linguagem do design de forma mais sofisticada do que muitos de seus  concorrentes. [...] Certamente é provocador, mas no fim não passa de uma tentativa de fazer a Prada se destacar da concorrência para vender mais ternos por mais dinheiro - se bem que uma tentativa baseada na análise dos signos convencionalmente usados para sugerir moda, e em sua inversão".

domingo, 16 de março de 2014

A estranha vida dos ocos

O mundo está cheio de ocos.

Eles constituem 90% da população mundial ou mais. Não espanta: eles são fabricados em massa, produção industrial por maquinário publicitário. A fachada às vezes muda, mas por dentro são todos iguais.

Os ocos são movidos por dinheiro e dívidas; isso faz parte do design, eles são fabricados apenas para consumir, gastar, fazer dívidas e exibir o dinheiro que não têm, do berço ao túmulo, pelo máximo de gerações possíveis. Aliás, não importa o nível de renda, todo oco é endividado, porque nunca há dinheiro suficiente para satisfazer seus desejos ocos, que brotam a cada novo surto publicitário. Ele não sai do shopping sem uma nova ambição oca; sua droga favorita é o cartão de crédito.

São escravos do pior tipo: pensam que são livres - estamos na era do grilhão virtual.

Os ocos não gostam de pensar, satisfeitos em fazer parte de uma mente coletiva burra. Pensar é um perigo para o oco: ele pode desconfiar que é oco, consome coisas ocas, segue padrões ocos e tem uma cabeça oca. E aí ele tem que optar: muda? Continua oco? E o que pensará o resto da gente oca? Melhor cortar o mal pela raiz, não pensar nunca, ou pensar só pela metade - para ter a ilusão de que pensa alguma coisa. Por sinal, ele pode se lembrar que os ocos não são imortais, que amanhã ele será um oco velho e, depois de amanhã, um oco morto.

Mas no fundo, o oco é apenas um eco de outros ocos, eles vivem para a reverberação mútua e mecânica, para ser o oco dos ecos, o eco dos ocos, o eco do eco do oco dos ocos.

Os ocos mais funcionais são grandes glosadores, sabem imitar com tamanha originalidade que até parecem pensar de verdade.

Mas não confunda. Há ocos em todo canto, no mundo inteiro, em todas as classes sociais, da favela a Manhattan.

Há ocos de todos os níveis de escolaridade, categoria profissional e filiação espiritual: ocos analfabetos, ocos médicos, ocos lixeiros, ocos doutores, ocos evangélicos, ocos espíritas, ocos de direita, ocos bacharéis, ocos professores, ocos pedreiros, ocos engenheiros, ocos católicos, ocos de esquerda, ocos com MBA (e haja oco com MBA - quanto mais oco, mais ele precisa acumular MBAs), ocos artistas, ocos "intelectuais" (também são muitos), etc, etc, etc...

Ocos gostam muito de títulos, que exibem e exigem como rótulo, ajudam a saber o que "pensar" de cada um. Nesse sentido, nada pior que um oco com pós-doutorado.

E quem governa os ocos? Outros ocos, é claro! Ocos gostam de mandar e obedecer, especialmente quando a coerção é suave. Assim oco que manda pode pensar que é bonzinho e oco que obedece pode pensar que é livre. Alguns ocos são políticos, muitos não suportam política, e outros precisam pensar - e dizer, e berrar - que são "politizados".

O oco do século XXI adora viajar, apenas para poder ecoar os clichês de outros oco-turistas investidos de maior autoridade. O oco viajante volta de qualquer lugar com uma renovada bagagem de lugares-comuns, baseados nas quase experiências que tiveram. Ele nunca encontra nada digno de interesse, porque seu olhar já está pronto antes de pisar no aeroporto. Ele já sabe o que vai ver, o que vai dizer do que verá e, principalmente, passará longas horas de sua quase-viagem postando dúzias de fotos dessa quase-aventura, para que todos seus quase-amigos saibam como ele está quase (mas apenas quase) se divertindo. A diversão propriamente dita será quantificada depois, pelo número de curtidas na sua foto.

Mas quem é oco? Eu sou oco. Você também. Não nos enganemos.

Parafraseando Buda, todos somos ocos - só varia a medida. Uns são mais, outros menos; alguns quase totalmente, outros quase nada. Mas podemos ser menos ocos a cada dia que passa...

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Viver em Paris

Em seu cotidiano, os parisienses desfrutam de atividades únicas, como:

-pegar metrô cheio e sem ar condicionado na hora do rush - em Paris.
-enfrentar fila de banco - em Paris.
-resolver burocracia no banco - em Paris.
-ficar preocupado com o orçamento da semana - em Paris.
-comer apressadamente no McDonald`s para a aula que começa em 20 minutos - em Paris.
-zanzar durante dias por meia cidade para resolver a burocracia insana do serviço de imigração - em Paris.
-gastar dinheiro com essa burocracia insana - em Paris.
-mofar na fila do supermercado - em Paris.
-caçar uma padaria aberta depois das 18:00 - em Paris.
-lavar louça - em Paris.
-lavar roupa - em Paris.
-separar o lixo - em Paris.
-jogar seu complicado lixo fora - em Paris.

O resto é coisa de turista...

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A mentira nas redes sociais

Depois de longa ausência, finalmente entreguei minha tese; a oficina volta a funcionar.

Hoje minha esposa comprou um livro delicioso: Como ter uma vida normal sendo louca, de Camila Fremder e Jana Rosa. Li inteirinho no caminho para casa - sim, sou pobre, ando de ônibus e fiquei preso no engarrafamento! As autoras abordam várias situações do cotidiano com um humor que vai desde o nonsense à mais fina ironia, fazendo rir e refletir ao mesmo tempo. Resolvi transcrever integralmente o último (e melhor) capítulo do livro.

"Este ensinamento não deveria ter esse título redundante, porque não existem redes sociais sem mentiras.

Todos que já viram fotos do Orkut Büyükkökte (o criador do Orkut) e do Mark Zuckerberg (criador do Facebook) entendem o porquê do esforço de criar um mundo onde podemos ser mais bonitos, ricos e magros dentro de uma banheira tomando champanhe.

No começo até nos esforçávamos para falar a verdade quando entrávamos em comunidades do Orkut, ingenuamente, conversando com pessoas do mundo inteiro sobre assuntos que, muitas vezes, queimavam o filme, sem nenhum cuidado com o que escrevíamos e nenhum medo de nos expor.

Talvez pelo layout mais clean do Facebook e pelas pessoas que começaram a usar o Orkut para fazer perfis maldosos, ameaças e aceitar testimonials sem noção, quando chegamos no Face nos sentimos mais intimidadas para abrir a vida. Tudo começou a ficar mais difícil, com mais links, mais páginas e mais funções, além de pela primeira vez ser muito restrito, apenas para quem conhecíamos.

Nos últimos anos fomos treinadas a agir de caso pensado. Abandonamos aqueles amigos que nunca vimos da comunidade "Remédio tarja preta" e todas as fotos sem maquiagem e de roupa feia que tirávamos em câmeras digitais, e nos tornamos pessoas que só podem ser felizes, bonitas, críticas, viajadas e entendidas de música.

Hoje, se você escrever em uma rede social que está chateada, as pessoas vão te achar depressiva, e depressiva é muito distante de chateada, como você e todos os psicólogos do mundo bem sabem. A verdade é que você tem que estar feliz, muito feliz, mais feliz do que o normal de feliz, mais feliz do que se sente quando nasce um filho seu, todos os dias, o tempo todo. E tem que ser feliz besta, amorosa, do tipo que gosta de todo mundo e manda corações o tempo todo, para qualquer pessoa que tem preguiça na vida real.

Inclusive o coração, que no passado já foi um símbolo do amor, hoje é usado para mandar respostas rápidas para alguém que você não está a fim de escrever qualquer palavra.

Quando começamos a usar o Twitter, ainda tínhamos um resto de ingenuidade do Orkut, que nos fazia contar o que almoçávamos, como estávamos nos sentindo e quando levávamos um pé na bunda, com detalhes e nomes. Também falávamos mal do emprego, do chefe, de pessoas conhecidas, de minorias e de famosos, porque achávamos que era uma terra de ninguém, e era mesmo.

Hoje ninguém conta na timeline que está triste porque terminou - as pessoas mandam indiretas. Ninguém fala o que realmente está sentindo, pois todos se sentem bem, maravilhosos, fingem que estão programando a próxima viagem, frequentando festas exclusivas, dando check-in nos lugares que vão, como se fosse interessante saber quem foi onde.

Se você falar mal do chefe ou do emprego, não só fica desempregada como também nunca mais arruma um trabalho na vida, em nenhum outro país, porque as redes sociais também mostram quem conhece quem. Mesmo se você for para a Romênia tentar recomeçar a vida, alguém vai conhecer alguém que conhece alguém que conhece seu ex-chefe, e vai contar por inbox que você o criticou na internet.

Já estava de bom tamanho a paranoia que criamos no Twitter, fingindo o tempo todo sermos engraçadas, críticas, inteligentes e ocupadas, e aí apareceu o Instagram para acabar com tudo.

Nossa vida, que ainda era 30% real, virou uma completa mentira. Nossa pele nunca mais teve cor de pele, ela agora é Valecia, mas muitas vezes é Earlybird. Nossos cachorros não são mais o melhor amigo do homem, são objetos de exposição para competir quem tem o cão mais fofinho. Os filhos também servem para isso, e quem tiver um bebê gordinho e sorridente será eterno naquele aplicativo ou eterno enquanto o bebê não crescer e se tornar um adolescente desproporcional.

Pedimos comida pensando em tirar foto: muitas vezes trocamos um risoto por cheeseburger, só porque o cheeseburger é muito mais fotogênico, além de risoto parecer vômito. E engordamos muitos quilos, de tantas sobremesas que clicamos e comemos. Depois emagrecemos, só pra poder frequentar a academia e tirar fotos no espelho dela. Ninguém nunca mais se concentrou no pilates, porque estamos muito preocupadas tirando fotos de ponta-cabeça para colocar o filtro Brannan e criar hashtags do tipo #pilates #instavibe #saúde #justme #projetoverão.

Namorar também nunca mais foi a mesma coisa, porque cada estágio do relacionamento do casal precisa ser registrado. Desde o primeiro beijo até a primeira viagem com a família. Desde o presente que ele traz quando viaja até o anel do noivado, o casamento, a lua de mel em detalhes. E se rolar um divórcio precoce, não nos desesperamos mais, é só postar a foto de um livro de autoajuda e uma paisagem bonita que todos vão acreditar que está tudo bem.

Mas passamos tantas horas por dia mentindo sobre ser feliz que nós mesmas começamos a acreditar. Agora não conseguimos nem mais encontrar os amigos e curtir o momento, porque estamos muito ocupados olhando o celular e bolando um post para mostrar na próxima foto o quanto somos felizes, legais e conversamos quando estamos juntos, sendo que cada um está olhando para uma telinha e contando o número de likes que recebeu em uma foto ou frase, para saber se é querido ou não.

E mesmo sabendo tudo isso, e nos achando loucas, não pretendemos mudar. Muito pelo contrário, queremos mentir muito mais. Vai que pensando dessa forma tão otimista e positiva e fingindo que somos maravilhosas, absolutamente felizes e ricas, não nos tornamos isso finalmente?"